9.1.05

O carioca "gentil"

O mito do carioca gentil, tão maravilhoso quanto a sua sempre maravilhosa cidade, é onipresente. No atacado, funciona. Como figurantes de um filme épico, andando sob o sol de Ipanema, domingo pela manhã, o carioca é senhor absoluto do sue mito. Ou numa feijoada num subúrbio da zona norte onde estaria a quintessência da carioquice. O problema é viver o carioca no varejo do cotidiano. A gentileza que transborda no estereótipo, é bem mais rara na vida real: no elevador do edifício sem nenhum “bom dia”, na briga pelo espaço na ciclovia da zona sul, na conversa durante o filme em cinemas pretensamente chiques da cidade...



Millor Fernandes não faz por menos:
“Tira de letra, o carioca, no futebol como na vida. Não é um conformista -- mas sabe que a vida é aqui e agora e que tristezas não pagam dívidas. Sem fundamental violência, a violência nele é tão rara que a expressão "botei pra quebrar" significa exatamente o contrário, que não botou pra quebrar coisa nenhuma, mas apenas "rasgou a fantasia", conseguiu uma profunda e alegre comunicação -- numa festa, numa reunião, num bate-coxa, num ato de amor ou de paixão -- e se divertiu às pampas. Sem falar que sua diversão é definitivamente coletiva, ligada à dos outros. Pois, ou está na rua, que é de todos, ou no recesso do lar, que, no Rio é sempre, em qualquer classe social, uma open-house, aberta sob o signo humanístico do "pode vir que a casa é sua". “ (http://www.almacarioca.com.br/cro05.htm)~

Fernando Sabino também dá sua contribuição ao mito do carioca boa praça:
“Carioca, como se sabe, é um estado de espírito: o de alguém que, tendo nascido em qualquer parte do Brasil (ou do mundo) mora no Rio de Janeiro e enche de vida as ruas da cidade.A começar pelos que fazem a melhor parte sua população, a gente do povo: porteiros, garçons, cabineiros, operários, mensageiros, sambistas, favelados. Ou simplesmente os que as notícias de jornal chamam populares: esses que se detêm horas e horas na rua, como se não tivessem mais o que fazer, apreciando um incidente qualquer, um camelô exibindo no chão a sua mercadoria, um propagandista fazendo mágicas. A improvisação é o seu forte, e irresistível a inclinação para fazer o que bem entende, na convicção de que no fim da certo — se não deu é porque não chegou ao fim. E contrariando todas as leis da ciência e as previsões históricas, acaba dando certo mesmo porque, como afirma ele, Deus é brasileiro — e sendo assim, muito possivelmente carioca.” (http://www.almacarioca.com.br/cro66.htm)

Como sujeito de crônicas, o carioca é imbatível, mas no exercício cotidiano de ser cidadão do Rio de Janeiro, essa unanimidade não resiste a pequenos gestos que tornam a vida mais fácil.