10.2.08

Transparentes


São Paulo, domingo, 10 de fevereiro de 2008
Transparência no cartão
FERNANDO MATTOS

Os dados, registros e informações não pertencem ao Estado, mas aos cidadãos, que são os titulares do poder
O ATUAL episódio dos cartões corporativos coloca em destaque questão da mais alta relevância que não despertou, ainda, a devida atenção da sociedade brasileira. Trata-se do acesso à informação, direito fundamental estabelecido no Brasil apenas com a edição da Constituição de 1988: "todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral (...), ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado" (artigo 5º, XXXIII).
Mesmo em outros países, o direito de acesso à informação é tema recente. O Brasil ressente-se da ausência de uma efetiva normatização desse direito. O problema maior, todavia, é a falta de cultura da sociedade quanto ao direito de acesso às informações públicas e ao dever dos agentes públicos de fornecê-las.
O direito de acesso à informação, aliado ao princípio da publicidade no ambiente da administração pública (artigo 37, "caput", da Constituição), impõe ao agente público a observância da cláusula da máxima informação, preceito próprio das democracias. Isso rompe com a cultura do segredo governamental, que era a nossa praxe durante o regime ditatorial de triste memória.
Nesse novo paradigma jurídico, os dados, registros e informações, especialmente os relativos à execução do Orçamento, não pertencem ao Estado, mas aos cidadãos, que são os titulares do poder. Dessa forma, assegura-se a transparência necessária da gestão pública, para fins de materialização da democracia participativa, no que se refere à fiscalização por parte da sociedade. Inibe-se a corrupção, ao ampliar sobremaneira a possibilidade de fiscalização.
Além do dever de atender aos pedidos de informação, o agente público tem o dever de franquear o acesso ao banco de dados eletrônicos dos órgãos públicos, dotado de ferramenta de pesquisa de conteúdos que possibilite o pleno, rápido, eficiente e simplificado acesso aos documentos e às informações, principalmente no que diz respeito aos gastos públicos.
O site Portal Transparência da CGU (Controladoria Geral da União), de acesso público, que possibilitou o conhecimento da farra do cartão corporativo, revela a importância desse dever do agente público e a necessidade de sua ampliação e disseminação entre todos os órgãos públicos.
O preocupante é que, devido à repercussão do episódio, o governo determinou a retirada do mencionado site dos dados referentes às despesas com alimentação em nome da Presidência da República, sob o argumento de que isso se daria para preservar a segurança do Estado.
É fato que o direito de acesso à informação, de acordo com a norma constitucional, sofre restrição se e quando o sigilo for imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
É evidente, porém, que o administrador não pode, ao seu bel-prazer, fazer essa classificação para, assim, sonegar informação à sociedade quanto a determinados atos, especialmente quando se trata de despesa feita por meio de cartão corporativo, instrumento hábil para facilitar a realização de pequenas despesas que não exigem licitação, mas que, como os fatos recentes ensinam, incentiva a sua utilização para gastos inadmissíveis com o dinheiro público.
Compras em "free shops", supermercados, vinícolas etc., obviamente, não são informações que comprometem a segurança da sociedade ou do Estado. Espera-se que o Parlamento investigue os fatos e, mais ainda, que legisle sobre a matéria.
O projeto de lei 219/03, que regulamenta o direito de acesso à informação, está pronto para votação no plenário da Câmara dos Deputados.
Conquanto mereça alguns reparos, que ainda podem ser feitos, o referido projeto de lei representa sensível avanço em relação ao tema e tem o mérito de colocar parâmetros para as restrições ao exercício desse direito fundamental. Que o episódio contribua para difundir a cultura do acesso à informação, ampliando-a, e não para restringi-la, como infelizmente quer o governo.

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FERNANDO MATTOS, 34, mestre em direito público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é vice-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) na 2ª Região e juiz federal em Vitória (ES).

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1002200809.htm