4.9.09

Cautelosamente pessimistas em nossos diagnósticos, severamente otimistas em nossas esperanças


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Sociedade líquida
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman explica por que acredita que as instituições deixaram de ser sólidas

Alexandre Werneck

A imagem do sociólogo polonês Zygmunt Bauman usada na orelha de todos os seus livros lançados no Brasil (pela Jorge Zahar) é a de um senhor idoso de cachimbo. O objeto, que parece remeter ao tipo de intelectual tradicional que este celebrado nome das ciências sociais contemporâneas encarna, parece uma metáfora para o tom professoral do pensador. E se há uma ferramenta de que Bauman parece entender é a metáfora. A fase atual de sua obra, iniciada em 1990, quando se aposentou da chefia do Departamento de Sociologia da Universidade de Leeds, na Inglaterra, e se tornou professor emérito da casa, é composta de livros-metáfora. Ou seja, formas de traduzir em imagens (elegantíssimas) o estatuto do mundo atual, que, com um símbolo, ele chama de ''modernidade líquida'', um mundo em que as instituições não são mais sólidas, e sim fluidas, inconstantes. É assim em cada um de seus trabalhos desde então: em vez de questões teóricas gerais, ele escreve sobre estar Em busca da política ou sobre Comunidade ou sobre A globalização - Conseqüências humanas.
Amor líquido, que acaba de ser lançado aqui, segue a mesma caça por imagens. Desde 1990, Bauman lançou mais de dez livros, um por ano. Curiosamente, entretanto, ele admite uma aparente contradição, que na verdade serve como mais uma metáfora: ele parece estar seguidas vezes reescrevendo o mesmo livro.

- Estou revisando-o, ampliando-o, estendendo-o em uma espécie de círculo hermenêutico, para moldar a questão original em uma perspectiva mais ampla - diz ele, por e-mail, horas depois de pedir para a entrevista não ser por telefone por sua idade avançada ter ''começado a lhe roubar alguns sentidos''.

Mas aguçou outros, sobretudo sua visão de mundo. Se seus livros mostram genialidade na forma, é o conteúdo que fez dele um nome tão celebrado. Bauman escreve sobre o que, no mundo, inquieta todo mundo. Seu grande projeto é o de pensar a problemática da difícil convivência entre liberdade e igualdade em um planeta de fraternidade tão dificultada.

- Em nossa modernidade líquida muitas tarefas cruciais para a sobrevivência humana e para o bem-estar, antes geridas coletivamente, têm sido ou já foram desreguladas, privatizadas, deixadas nas mãos de ações individuais. Nesse processo, os cidadãos comuns ficaram prontos - forçados ou seduzidos - a encontrar soluções individuais para problemas socialmente produzidos... Mas não há solução pessoal para os problemas sociais - diz.

Pois foi por conta de interpretações como essa que ele ficou conhecido por epítetos como o de ''Profeta da pós-modernidade'', dado pelo livro de mesmo nome do inglês Dennis Smith. Imagem grandiosa, que parece negar a metáfora do cachimbo, que ele inclusive nem usa mais tanto, graças aos cuidados da esposa, Janina, companheira de 56 anos.

E essa negação parece ainda mais forte ao se pensar que ao escrever sobre amor, solidariedade, política, fraternidade, é da vida que Bauman fala. Por isso mesmo, impressiona a relação que o pensador tem com a sua própria. A começar pela modéstia:

- Sou sem dúvida o tema mais tedioso que temos a discutir.

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Entretanto, é inegável que sua vida tem um papel central em sua obra. Isso fica claro, por exemplo, na explicação de um homem à beira dos 80 anos sobre escrever tantos livros nos últimos anos, em vez de trabalhar com o tradicional modelo da ''grande obra'':

- Uma pessoa tem que ter um longo pedaço de tempo diante de si para ser capaz de planejar projetos completos e para convocar a coragem e a arrogância necessárias para esperar e então escrever ''a última'' frase. Uma vez que o meu próprio fim se aproxima, essa serenidade se torna um luxo que eu não sou capaz de me dar. Há muitas coisas que eu não entendo e suas urgências aumentam à medida que o tempo para sua compreensão diminui.

Ao mesmo tempo, sua biografia parece a base de sua bibliografia. Bauman é um judeu sobrevivente da perseguição. De várias, aliás. Na juventude polonesa, a nazista o levou para a União Soviética, onde ingressou no Exército Vermelho e quase se tornou físico. Em 1968, a comunista o demitiu de seu cargo de chefe do Departamento de Sociologia Geral da Universidade de Varsóvia. Era um marxista gramsciano mais preocupado em produzir uma versão humanista do socialismo. Exilado fora do país, tornou-se um nômade até chegar a Leeds em 1971, onde se fixou para não mais sair. Hoje, mora com Janina em uma casa em um subúrbio da cidade, de onde já disse que não se muda, também como um ato-metáfora sobre sua história:

- Já nos mudamos demais.

O casal se conheceu nos anos 20 e ele lhe propôs casamento nove dias depois do primeiro encontro. Hoje, três filhas criadas ''e encaminhadas na vida'', o papel de mãe judia que compensa a falta de tradicionalismo do pensador, fez de Janina não apenas uma escritora celebrada, sobretudo por seu livro de memórias do holocausto (Winter in the morning), mas também por sua culinária tradicional.

Essa imagem do casal de avós cercados de doces judaicos apenas reforça a impressão de que Bauman é o homem certo para escrever Amor líquido. Para ele, o sentimento, no mundo da modernidade líquida, foi vitimado por ter se tornado tábua de salvação:

- Neste mundo acelerado, em que carreiras, objetos de desejo e de medo, fama, aplausos e estilos de vida andam a passos largos, o amor (e de uma maneira mais geral a amizade) ocupa facilmente o lugar deixado vago pelas hoje defuntas utopias sociais. Ao mesmo tempo, metade dos casamentos na Inglaterra acaba antes de completar 18 meses, o que prova que temos uma relação ambivalente com essa utopia.

O livro critica o verdadeiro mercado que se formou para o aconselhamento sentimental, e o fato de que, segundo ele, os casamentos se transformaram em fonte de satisfação que, se não satisfizer, deve ser descartada. Ora, é Bauman falando sobre o que inquieta o pensamento cotidiano, mas, diferente de outros ensaístas, que perdem profundidade ao colocar os pés no chão, ele diz que encontrar a distância segura entre o leitor comum e o leitor sociológico, não é nem mais uma questão política, mas algo que define a sociologia atual.


- Creio que esta seja a única raison d'être da sociologia sob as condições da modernidade líquida. A sociologia sempre foi, conscientemente ou não, uma conversação de mão única sobre a experiência humana mundana. Mas nas circunstâncias atuais, recai sobre a sociologia a tarefa de pôr firmemente às claras as raízes sociais dos problemas sofridos individualmente.
Essa opção não só estética, mas temática, ele atribui à esposa. Se Gramsci lhe deu o conteúdo marxista e Simmel lhe deu o método, Janina lhe ensinou que a sociologia só tem sentido para ajudar a humanidade. Tanto é que foi o livro dela sobre a perseguição aos judeus que deu origem à trilogia que Bauman considera seu grande projeto: Modernidade e Holocausto, Modernidade e ambivalência e Postmodern ethics (não lançado aqui), terminada no começo dos anos 1990. Depois dela, vieram os livros mais ensaísticos, os que seriam reescritos:

Hoje, se o premiado conferencista (ganhador do prêmio Adorno de 2000 e condecorado professor emérito de Leeds e da Universidade de Varsóvia do ano passado) falar sobre esses temas em locais diferentes como Berkeley, Yale, Camberra ou Copenhague é preciso enfrentar uma grande concorrência, sobretudo na Grande Europa, onde ele é sem dúvida mais amado que na Inglaterra, onde é menos habitué dos círculos acadêmicos, depois de sua ruptura pública com Anthony Giddens, o maior nome da academia britânica e guru teóricos da ''terceira via'' de Tony Blair, da qual Bauman, sangue socialista nas veias, quer distância.

E se lê o mundo como um dicionário de signos, ao mesmo tempo, o pensador não se furta a falar dele de maneira aberta. Sobre a questão palestina, que ele define como um dos mais falados e menos entendidos problemas de nosso tempo, o fato de ser judeu não parece abrir nenhum espaço para ser tendencioso e que revela um pragmatismo curioso em um cientista social, mas fala muito sobre alguém que já viu desgraças de perto:

- Procurar pela ''explicação'' do que acontece na Palestina é um erro. Apenas acrescenta combustível àquela fogueira, sugerindo ''razões válidas'' para a continuação da crueldade de lado a lado. Questões como ''quem começou?'' ou ''por quê?'' tornam-se irrelevantes, porque hoje o conflito possui uma lógica própria, independente de suas origens.

Essa maneira de pensar tem sido chamada por alguns de pessimismo centro-europeu que o autor teria trazido. Para ele, entretanto, não se trata mais de ser apenas otimista ou apenas pessimista:

- Acho que devemos ser (cautelosamente) pessimistas em nossos diagnósticos, mas (severamente) otimistas em nossas esperanças.

http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernob/2004/07/19/jorcab20040719001.html